Em entrevista ao Pernambuco, Miskolci comentou alguns pontos fundamentais de seu novo livro, como a relação entre as redes sociais e os levantes conservadores no contexto brasileiro.

Richard Miskolci Divulgacao

Conhecido por uma apropriação criativa da teoria queer no país, o sociólogo Richard Miskolci desenvolveu uma série de estudos que exploram diferentes nuances de políticas de gênero, sexualidade e desejo. Pesquisador e docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), investigou essas problemáticas em livros como Desejos digitais: Uma análise sociológica da busca por parceiros on-line (Autêntica, 2017), O desejo da nação: Masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX (Annablume, 2012) e Teoria queer: Um aprendizado pelas diferenças (Autêntica, 2012).

Em seu livro mais recente, Batalhas morais: Política identitária na esfera pública técnico-midiatizada, lançado neste ano pela editora Autêntica, Miskolci volta sua atenção para o conservadorismo imperante no país e as estratégias através das quais ele se consolidou entre nós ao longo dos últimos anos — entre essas, a ideia de “ideologia de gênero”. Na argumentação do autor, tanto os “empreendedores morais” do campo conservador quanto os “empreendedores de si” do campo progressista estão associados a ondas autoritárias e anti-intelectuais disseminadas na atual feição política do país.

Em entrevista ao Pernambuco, Miskolci comentou alguns pontos fundamentais de seu novo livro, como a relação entre as redes sociais e os levantes conservadores no contexto brasileiro.

O pânico moral, um comportamento que dispõe os “desviantes” como inimigos a serem perseguidos, foi incorporado como estratégia política eficiente nos últimos anos por aqueles que você denomina de “empreendedores morais”. Isso foi ainda mais ressaltado na última eleição presidencial, na qual vimos uma combinação explosiva entre mídias digitais e fake news. Como as mídias digitais se relacionam com a democracia nesse contexto?

Argumento em Batalhas morais que a hegemonia da comunicação por redes sociais, como Facebook e Twitter, e por plataformas de trocas de mensagens, como o WhatsApp, nos trouxe a uma esfera pública técnico-midiatizada. A opinião pública passou a ser disputada por grupos de interesse que fazem melhor uso das novas tecnologias do que a imprensa profissional em um contexto propício a extremistas, já que vivemos ainda as consequências políticas da crise econômica global de 2008. Trata-se de uma confluência entre um momento histórico marcado por tensões redistributivas e uma nova ecologia midiática benéfica a reacionários.

A nova esfera pública tem permitido um ataque contínuo aos mediadores sociais, como instituições e seus representantes. Ela incita a mobilização política, mas isto não se traduz em aprofundamento da democracia; antes, [se traduz] no seu ataque. Vemos online movimentos coletivos alimentados por objetivos individualistas com efeitos não apenas conflituosos, mas também dilacerantes para a vida social. Daí o mal-estar e as consequências sociais e psíquicas que todos sentimos, em maior ou menor grau, nos últimos anos, na degradação das relações de confiança, familiares, de amizade e até amorosas.

Tensões redistributivas sempre geraram conflitos sociais e, em países como o Brasil, grupos de extrema direita ganharam força porque desenvolveram uma estratégia comunicativa vitoriosa. Aproveitaram a janela de oportunidades criada pelo ataque da mídia tradicional à esquerda para conquistar uma faixa maior do eleitorado. Os grupos de interesse reacionários capitalizaram um contexto benéfico a eles acionando uma gramática moral que lhes beneficiaria. À histórica plataforma anticorrupção nos negócios públicos — que data, ao menos, desde o Governo Vargas [1951—1954] —, a extrema direita associou a sua sobre a moralidade nas relações sociais, criando uma articulação reacionária voltada contra avanços redistributivos e igualitários.

Em parte, os grupos liberais colaboraram com seus opositores ao adotarem um enquadramento moral na luta pelo reconhecimento. A vigilância comportamental e vocabular que grassa há anos entre vertentes do ativismo é, além de autoritária e punitivista, estrategicamente desastrosa para os direitos humanos. Quando eles [os direitos humanos] deixam de ser discutidos na linguagem do direito e da saúde pública e passam a ser disputados em batalhas morais, seus adversários, historicamente vistos como autoridade moral, vencem.

Os pânicos morais acionados nas disputas políticas e eleitorais moldaram a vida brasileira na segunda metade da década de 2010. Foram uma estratégia comunicacional bem-sucedida de grupos reacionários para alcançarem o poder com o intuito de desmontar os avanços em direção à igualdade, como as ações afirmativas, o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo pelo STF, a PEC das domésticas, a lei contra o feminicídio.


Ao largo da disseminação de uma suposta “ideologia neutra” defendida pela extrema direita, vimos ser espraiada no tecido social brasileiro uma ideia nociva de “ideologia de gênero”. Como essa ideia conseguiu aderência no contexto latino-americano e quais os seus desdobramentos?

No Brasil, desde o início da década de 2010, os grupos de interesse reacionário foram oportunistas no sentido de aproveitarem o momento histórico para associarem seus antagonistas políticos a um referente socialmente reconhecível como negativo. Era de se esperar que mudanças sociais em direção a uma sociedade mais igualitária não seriam aceitas sem oposição. A história do Brasil é prova de que toda vez que classes subalternas começam a ascender socialmente ao andar de cima, tanto elite quanto classes médias, muito ciosas do que veem como sua superioridade relativa, reagem. Assim, a chegada ao poder de uma presidente mulher com passado de oposição ao regime militar em meio a avanços redistributivos — tanto em termos econômicos como de direitos — foi criando uma oposição crescente e que se articularia em torno de uma figura de extrema direita.

Não por acaso, em maio de 2011, uma semana após o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo pelo STF, um deputado obscuro de base eleitoral militar e religiosa conquistou a atenção da mídia e conseguiu abortar um programa de combate à discriminação nas escolas que apelidou de “kit gay”. Pouco a pouco, sua crescente articulação com setores sociais e da mídia estabelecida conseguiu criar um pânico moral que concatenaria a presidente mulher de esquerda e as políticas redistributivas e de direitos humanos como sendo um único grande inimigo que batizou de “ideologia de gênero.” Tal fantasma foi eficiente como estratégia comunicacional para criar uma aliança reacionária e conquistar a vitória eleitoral para a extrema direita, mas seu sucesso não se deveu apenas à nova ecologia midiática. Cabe sublinhar que funcionou por causa daquele momento histórico assim como contou com o apoio da mídia tradicional, a mesma recentemente convertida a defensora da democracia, do meio ambiente e dos direitos humanos e que atribui apenas às redes sociais e aplicativos a desinformação e outros malefícios de nossa vida política atual.


Em termos de impacto sobre as nossas subjetividades, como as mídias digitais vêm afetando a esfera pública técnico-midiatizada?

Batalhas morais mostra como a esfera pública técnico-midiatizada em seu formato atual, ou seja, dominada por um oligopólio com sede no Vale do Silício (EUA), trouxe consequências predominantemente negativas para a vida social e psíquica. Sem a devida regulação legal ou econômica que todo oligopólio exige, vivemos as consequências de nos relacionarmos de forma mediada por plataformas comerciais que não apenas exploram nossos dados de navegação, mas sobretudo nos afetam: tanto criam consequências econômicas e políticas como mexem com nossas emoções e relacionamentos. Até o momento, as relações mediadas por estas tecnologias moldaram subjetividades crescentemente individualistas, frequentemente empreendedoras e, sobretudo, voltadas para comportamentos afeitos a uma lógica de mercado.

Os comportamentos de manada que se expressam em violências, como os cancelamentos e o individualismo incentivado pela conversão em perfis online que servem de plataformas de empreendedorismo pessoal, confluem no individualismo em rede. O individualismo em rede se expressa, portanto, não apenas no comportamento de cada um, mas também — e sobretudo — na agência coletiva contra instituições, seus representantes e profissionais. Os ataques ao Supremo, ao Congresso, à imprensa profissional e até mesmo às universidades e aos cientistas são exemplos desse impulso contra o bem comum, o ressentimento em relação às formas organizadas da vida em sociedade. Não por acaso, o ataque ao bem comum tem sido articulado por grupos de interesse liderados por autocratas, em geral, políticos de extrema direita. O líder antissistema é a encarnação do que talvez pudéssemos caracterizar como um delírio coletivo alimentado pela esfera pública técnico-midiatizada.


Parte de seu trabalho também articula literatura, história e questões de gênero. Como a literatura produzida no Brasil pode nos auxiliar a elucidar questões de gênero e sexualidade caras à nossa realidade?

Desde a graduação eu me interessei pela literatura não apenas como fonte documental, mas também como uma forma de conhecer as relações sociais. Meu primeiro ensaio nessa direção foi a tese de doutorado em Sociologia defendida na USP em 2001 e publicada em livro, em 2003, como Thomas Mann, o artista mestiço (Annablume). Mas considero que foi em O desejo da nação (2012) que me aproximei do que ambicionava em termos investigativos: analisar alguns romances como meio para compreender melhor a imaginação política de nossas elites intelectuais. Nesse intuito selecionei três obras: Bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, O Ateneu (1888), de Raul Pompeia e Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, e tentei compreender as articulações entre subjetividade e política na esfera do desejo, da sexualidade e do gênero. Deparei-me com o fato de que a imaginação das nossas elites conectava masculinidade e branquitude de maneira que o desejo operava, ao mesmo tempo, como via para construção da nação e ameaça às bases desse edifício imaginário. Trata-se de pesquisa fincada em um momento histórico em que o papel e a importância da literatura era maior. A sociedade contemporânea é mais diversa, globalizada, menos elitizada e o público leitor está fortemente segmentado.

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